A fortuna de Cruz e Souza


João de Cruz e Souza é considerado, hoje - para a maioria dos escritores negros nas sendas de expressar com Literatura o seu particularismo racial - , o grande precursor. Em Luíz Gama, satírico feroz, o abolicionista sobrepuja, muitas vezes, o poeta. Bodarrada, por exemplo, é um látego zurzido contra a sociedade (o satírico revira, comunente, o visível , o risível, aquilo que, por evidente demais, presta-se a ser coberto de ridículo). Trabalha, por razões várias, com exterioridades. José do Patrocínio, é o grande tributo abolicionista , autor também de um romance que poucos conhecem, Mota Coqueiro.

Cruz e Souza, porém, é o eu negro, desentranhado no século XIX, com o Emparedado e quase toda a sua obra, e é no caminho dele que segue grande número de escritores negros à busca da sua melhor expressão.


Cruz e Souza nasceu em 24 de novembro de 1861, dia da festa de grande místico espanhol de que ele tem o nome. Pais, desimportates socialmente: o mestre-pedreiro Guilherme de Souza e sua mulher, Carolina. Já aos oito anos tem propensões literárias; faz versos. Espantava já, por saber rimar. E é na antiga Desterro (atual Florianópolis) que começa a sua formação. De Fritz Müller, sábio alemão que fazia estudos da fauna e flora do Brasil, respeitado na Europa, o negrinho Cruz e Souza mereceu esta frase: " Esse preto representa para mim mais um reforço na minha velha opinião contrária ao ponto de vista dominante que vê o negro como um ramo por toda a parte (talvez sobre todos os aspectos) inferior e incapaz de desenvolvimento racional por suas próprias forças." 1881 é o início de sua amizade com Virgílio Várzea, e como ele redigiu até 1889 a Tribuna Popular. Empenhou-se - está provado - na campanha abolicionista. Virgílio Várzea testemunha que "Cruz e Souza tinha grande paixão pelas idéias humanitárias e serviu-se sempre, como fanático, sem se poupar sacrifícios, na tribuna , na praça publica e principalmente no jornalismo".

( In de Camargo, Oswaldo, O Negro Escrito - Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira)

"...Um negro retinto e ogulhoso, que teve de enfrentar todos os preconceitos herdados da escravidão e arrancar com a sua Literatura o respeito dos que o conheceram. Um poeta polêmico e que não transigia, com os princípios da beleza que ele escolhe para a sua expressão. Dizem que, sendo negro, não deu importância à sorte de seus irmãos escravos. Mentira! Provam o contrário suas conferências abolicionistas realizadas na Bahia, suas colaborações nos jornais e poemas como Escravocratas, Na Senzala, Grito de Guerra, e Dor Negra e Consciência Tranquila, em prosa (...) Hoje que o escritor negro esta assumindo lenta e firmemente a expressão de suas vivências com o poema, conto e novela, Cruz e Souza não pode ficar apenas nas antologias e edições que bem poucos lêem. Cabe-nos tornar conhecida , sobretudo em nossa coletividade, sua vida e obra, colocá-lo entre nós como um homem igual anós que foi ".


(Grupo Quilombhoje: Abelardo Rodrigus, Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina)



Entrevista de Oswaldo de Camargo a Paulino Santana.


Esta entrevista foi dada ao estudioso de questões negras Paulino Santana (Alaru), no Museu Afro Brasil, (São Paulo - SP), no ano de 2007.


A Glória de Carolina Maria de Jesus


Nos meados dos anos 50, alguns anos antes da publicação de Quarto de Despejo, o poema, talvez, mais declamado nas tertúlias que as associações culturais negras realizavam, em São Paulo, lembrando seus grandes homens e datas especiais era “Tem gente com fome” do poeta pernambucano Solano Trindade, que vale citação um tanto prolongada:


Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo
Parece dizer
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Piiiiiiiiiii

(................................)


Só nas estações
Quando vai parando
Lentamente começa a dizer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Mas o freio de ar
Todo autoritário
Manda o trem calar
Psiuuuuu

(Trecho do poema, publicado em Cantares ao Meu Povo (Poesias), Editora Fulgor, pg. 65)

É a fome não silenciada, o não-ter, o não-ser nada, além de miserável, o ser preta e mulher, além de outros vazios sociais que a vergam e desesperam que a escritora põe no livro que marcou sua trajetória “incomum e perturbadora”, como observam José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine na biografia Cinderela Negra - A Saga de Carolina Maria de Jesus (Editora URFJ, 1994):


22 de junho... Saí triste porque não tinha nada em casa pra comer. Olhei o céu. Graças a Deus não vai chover. Hoje é segunda feira. Tem muitos papeis nas ruas. No ponto do bonde, eu me separei de Vera.


Ela disse:- Faz comida, que eu vou chegar com fome. A frase comida ficou ecolodindo dentro do meu cérebro.


Parece que o meu pensamento repetia: Comida! Comida! Comida!




Quarto de Despejo tem, ainda, algo a ver com o poema Litania dos Pobres, de João da Cruz e Souza, poeta negro catarinense, nascido em Desterro (atual Florianópolis), em 1861.


Dele:

Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

Mãos inquietas, estendidas

Ao vão deserto das
vidas.

(fragmentos tirados do livro Faróis)


Com a diferença que, quando Carolina surge com o Quarto de Despejo, morando ainda na favela do Canindé, o número de “miseráveis e rotos” havia crescido assoberbadamente.

Neste número, a maioria negros, pardos, mulatos, por efeito da miséria e da marginalização não estancadas com a Abolição nem com a República que, se se atentasse a respeito da própria etimologia do termo, deveria ser “coisa pública”, isto é, para todos: negros, brancos, índios. Mas não foi.

A trajetória de Carolina - lemos no livro de Bom Meihy e M. Levine - implica a visão de um lado pouco mostrado da cultura brasileira: a luta quotidiana de uma mulher “de cor”, pobre e desprovida de favores do Estado, de organismos sociais, de instituições e até de amigos. Logicamente isto não remete apenas a ela enquanto indivíduo, mas também a todo o sistema que abriga os despossuídos legados ao anonimato. O que a distinguiu dos demais foi o fato de ser um tipo capaz de desafiar a pobreza e seus promotores através de incomum capacidade de luta e perseverança e de uma agressiva personalidade (...) Carolina foi, pode-se dizer, uma guerreira valente contra as tropas da herança racista, antiinteriorana, preconceituosa em relação às mulheres e, sobretudo, uma pessoa afrontadora da marginalidade e da negligência política. Rebelava-se sozinha e por isso jamais chegou a ser revolucionária ou heroína permanente”. (Página 23 do livro citado).

Nascida em Sacramento, cidadezinha rural de Minas Gerais, em 1914, Carolina jamais, pela origem, poderia sonhar com ser conhecida, ter o mínimo destaque na vida ou na sociedade brasileira. Descendia de escravos, fato que na história nacional selou com miserabilidade, e continua selando, o destino de muitos brasileiros. A escola, que cursou até o segundo ano primário, não lhe interessou muito. Nada que a fizesse sobressair. Fica a declaração, lembrada por seus biógrafos, de que sua grande inspiração não havia sido a escola, e sim seu avô, a quem chamava entusiasticamente de “Sócrates africano”.

É com 33 anos, em 1947, que Carolina chega a São Paulo. Dormiu debaixo de pontes, em estradas, passou muitas noites ao desabrigo. Foi doméstica, faxineira, auxiliar de enfermagem em um hospital, na tentativa de sobrevivência que a colocava entre os inúmeros “miseráveis e rotos” postos nos versos de Cruz e Souza.

Por esse tempo, o número de favelados em São Paulo seria perto de 50 mil. Carolina passa a ser um deles. E nesta condição, sempre acompanhada da fome (“o meu dilema é sempre a comida”), dialoga com a cidade:

“Oh São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela... o dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede:

- Mamãe, vende eu pra dona Julita, porque lá tem comida gostosa.”

Os primeiros trechos do Quarto de Despejo foram escritos em 15 de julho de 1955, portanto há 50 anos. Grave-se: 15 de julho de 1955 aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. (...)

O livro que deu fama à Carolina é, na maioria de suas páginas, o relato da luta corpo a corpo com a fome, para, no mínimo, sobreviver, manter os filhos. Com a fama, teve ela, por algum tempo, importância de gente bem posta, digna de ser entrevistada na televisão, falar para os jornais , opinar sobre política, literatura, favela, o Brasil... e, também a seu modo, mostrou a crença da escritora no poder da palavra escrita.

Isso se depreende de trecho de reportagem publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, em 14 de fevereiro de 1977, noticiando a morte de Carolina:

“Um dia houve uma inauguração de um parque infantil, próximo da favela. Todo mundo foi... conta Carolina. A certa altura, os adultos começaram a expulsar as crianças e a tomar conta das gangorras e balanços. Carolina disse para uma companheira, que morava ao lado: “Este é o tipo de animal com quem eu tenho que viver. Eu os porei no meu diário, assim jamais serão esquecidos”.

A frase foi ouvida por Audálio Dantas, na época um jovem repórter do Diário de São Paulo, alagoano, filho de nordestinos que haviam chegado a São Paulo nos anos 30. Audálio, curioso, perguntou sobre o tal diário. Compilou-o, depois, em 180 páginas e conseguiu um editor”.

Quarto de Despejo é, pois, um diário que sai da vocação literária de Carolina e, com extrema veracidade, da miserabilidade da escritora, um libelo contra a fome e tudo que daí origina.

Surpreendentemente virou um fenômeno ligado ao mercado do livro, tendo vendido dez mil exemplares nos três primeiros dias do lançamento; passados seis meses, 90 mil, chegando a alcançar, no espaço de um ano, a vendagem de Jorge Amado, o escritor brasileiro mais lido.

Mas é sintomático o desabafo da escritora, após sua mudança para a casa de alvenaria na Rua Benta Pereira, no bairro paulistano de Santana:


“Triste glória que não me deixa ter vontade própria. Quero ser eu. Fizeram-me desviar de tudo que pretendia quando morava na favela e ansiava de deixar o barraco. O que sou agora? Um boneco explorado e me recuso a isso."

(Depoimento a Ignácio Loyola, em 1961)

O diário de Carolina é um trecho insólito e “socialmente irritante” entre tudo o que se escreveu no Brasil defrontando as mazela de nossa sociedade. Livro e atitude de recusa. Recusa em não aceitar, para ela, o script apresentado pela cultura letrada branca. A seu modo, rebeldia e, após, o preço a pagar pela rebeldia.

Carolina Maria de Jesus Morreu na madrugada do dia 13 de fevereiro de 1977, pobre e esquecida. Morava, nesse tempo, em Parelheiros, arredores de São Paulo, após residir na sua sonhada “casa de alvenaria” (título de um outro livro que publicou, relativo insucesso de vendagem: 3.000, diante dos 90 mil que ela havia conseguido com Quarto de Despejo).

Passados 45 anos da publicação do diário que a ergueu à fama, este continua sendo uma das mais instigantes indagações sobre a sociedade brasileira. Sobretudo tendo-se em conta os binômios cruciais que agitam constantemente o Museu Afro Brasil: “negro e miséria”, “negro e auto-estima”, que a República de 1889 não conseguiu ainda resolver. Fotografias e texto originalmente publicado no Jornal das Exposições nº 1 de maio de 2005.

Por Oswaldo de Camargo, jornalista e escritor.

Publicação do Museu Afro Brasileiro de São Paulo - Capital.