11 anos sem Paulo Colina (1950 - 1999)


Meu companheiro Paulo Colina, poeta no claro e no escuro. Por Oswaldo de Camargo

A morte do poeta Paulo Colina leva-nos, a nós que o acompanhamos por quase duas décadas, a estas breves mas pertinentes reflexões sobre a finitude do ser humano e a inserção do artista no âmago de causas que, tocando-o, conduzem-no a incomum preocupação com o homem e o mundo. Paulo Colina foi não só um notável artista, mas também um autêntico agitador cultural. Foi com ele, mais Abelardo Rodrigues, Cuti (Luís Silva) e o escritor argentino Jorge Lescano que fundamos, em 1978, no Bar e Restaurante Mutamba, no Centro, o Grupo Quilombhoje, que hoje edita os "Cadernos Negros". Foi a Paulo Colina que deveu a notável atuação do escritor afro-brasileiro em duas Bienais Nestlé, a marcante divulgação fora da coletividade negra da produção poética de jovens escritores afro-brasileiros, com o premiado "Axé - Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira", da editora Global, em 1982. Paulo Colina foi autêntico escritor. Sua presença na União Brasileira de Escritores tornava-o apto a uma visão clara e objetiva da necessidade de o escritor negro inserir-se, sem perda de identidade, na vida geral da literatura do país. Gostava de nos ouvir, por eu ser mais velho (no mínimo 15 anos) e foi com Abelardo Rodrigues, poeta excelente de "Memória da Noite", nosso inseparável companheiro. Chegamos a ganhar o apelido de "Triunvirato"... Poeta lírico, social, poeta autêntico da Negritude, já tornada moderna após os caminhos abertos por Lino Guedes, em 1926, com "O Canto do Cisne Preto", ou Solano Trindade, cantor de "Poemas de Uma Vida Simples", de 1944, em Paulo Colina se acentuou, como em poucos autores da Negritude, a inquietação por uma estética que não fosse tão-só justificada ou medida pela quantidade de livros, mas o esteio para obras que perdurassem no tempo, por serem autênticas, elaboradas e sancionadas por uma alto sentido estético. Daí a pertinência destes versos que tiveram, e têm, justa fama: "Bastaria ao poema apenas/ a cor da minha pele? "Notável a caminhada de Paulo Colina, de sua estréia, com "Plano de Vôo", a "Armas como Beijos". Sua inquietação, nesta estrada, advinda da convicção de que arte não se improvisa, nem é tão-só sentimento e intuição. Há que armar-se, apetrechar-se para trazê-la ao território do perceptível, chamá-la à presença de quem a deseja produzir e distribuir. Daí, muitas vezes, nosso lembrar, em acesas discussões, do verso de Carlos Drumond de Andrade: "Trouxe a chave?". A prosa de "Fogo Cruzado", de 1979, forte e crua muitas vezes, teve sim prosseguimento, num romance que permanece inédito e foi lido e discutido em nossa casa, onde ficamos aquilombados durante toda uma noite comentando e fazendo observações sobre o texto coliniano. Atendeu a elas, sobretudo a respeito de esboçar-se com mais nitidez certos personagens do romance. Rescreveu-o, mas não chegou a nos mostrar a segunda versão. Provou, porém, que estava atento às possibilidades da "arte que talvez não seja ainda", mesmo que entusiasme o que a produziu.Muito se pode escrever sobre Paulo Colina, que na pia batismal recebeu o nome de Paulo Eduardo de Oliveira. Deixou sua marca nos livros que escreveu, deixou na sensibilidade e na consciência de inúmeros leitores. Agora é o momento de nos voltarmos ao que realizou como artista, com redobrada atenção. Foi homem com todos os conflitos de homem, foi artista, com missão assumida de melhorar o que estava fincado ao seu derredor, muitas vezes injusto e mal-afinado com o que deveria ser.


O canto de amor à mulher...

Mulheres, também

Luiz Gama

Luiz Gama, no século XIX, instaura o canto de amor à mulher negra, cujo mais conhecido exemplo é " Meus Amores", publicado pela primeira vez no jornal Diabo Coxo de 3 de setembro de 1865, o autor assinando com o pseudônimo de Getulino:

"Meus Amores"
Meus amores são lindos, cor da noite
recamada de estrelas rutilantes;
tão formosa crioula, ou Tétis negra,
tem por olhos dois astros cintilantes.


Solano Trindade

Em várias encruzilhadas da poética solaniana postam-se, abundantes, cantares à mulher negra, como nestes versos:

"Deixa"

Deixa ó negra
admirar teu corpo
como seu eu fosse Picasso
e modelar-te em pedra
Deixa ó negra
que eu te cante um salmo
com a ousadia de um Salomão [...]

Auta de Souza

De Tristão de Athayde, sobre Auta de Souza:

"Fez versos por amor da Poesia, por um amor tocante, puríssimo da Poesia e não para aparecer ou comunicar uma mensagem. Fez verso para si e para aqueles que mais de perto a cercavam.(...) Auta de Souza viveu em estado de graça e os seus versos o revelam de modo evidente. Daí o grande lugar que ocupa em nossa poesia cristã, em cuja cordilheira sempre há de ser um dos pontos altos mais puros e solitários." (In de Camargo, Oswaldo -
O negro escrito - Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira, 1987, pág. 66)


"As Mãos de Clarisse"
Causam-me tantos martírios
As tuas mãos adoradas
Com estes dedos de fadas.
Tão formosos e pequenos...
que eu chamaria dois lírios
Se houvesse lírios morenos!


( In "Horto", pág. 75, edição da Fundação José Augusto, Natal (RN), 1970.)



Teixeira e Souza e o primeiro romance brasileiro.



Podemos, pois, assinalar que a presença do "negro inteiro" na Literatura brasileira começa apartir de 1830. Note-se: o negro escravo. No mais são as aparições que já transparecem como, por exemplo, no caso do mulato Antonio Gonçalves Teixeira e Souza (1812 - 1861), com o seu Independência do Brasil, um poema narrativo. Lê-se este primor, forjado com raça e brio, para o momento culminante da decisão da independência da Pátria:


Nada mais de reunião! d' ora em diante
Portugal para nós seja estrangeiro!
Viverá para sí nobre e possante
O Venturoso reino Brasileiro!
Juremos, pois, amigos, neste instante
Com ânimo fiel, nobre guerreiro
Seguir da cara pátria a livre sorte.
Bradando sempre Independência , ou Morte!


E como se saiu , no labor de poeta lírico , o mestiço Teixeira e Souza? Vejamos excertos de Aos anos de uma menina:


Menina, sabes tu porque naceste?
Sabes no mundo qual missão de espera?
Sabes de onde vieste?
Oh! não saias da infância deleitosa
Não entres neste mundo de misérias
morada venenosa!"


Mas Teixeira e Souza não foi so poeta. É também o romancista de O Filho do Pescador (1843), o primeiro romance brasileiro, levando incontestavelmente a primazia sobre Máximas de Virtude e Formosura, da paulista Tereza de Margarida da Silva Orta ( 1711 ou 1712 - 1787), escrito 91 anos antes. Primazia, por uma razão simples: embora nascida no Brasil, Tereza Margarida não é uma escritora brasileira.


"Nada reflete no nosso meio, que ela praticamente não conhecia. As aristocráticas raízes paulistas maternas, de Tereza Margarida, eram afinal de contas, bem européias". [...]

( Hollanda, Aurélio Buarque, In O Romance Brasileiro (De 1752 - 1930, edições O Cruzeiro, 1952).


A primeira obra que se pode chamar romance brasileiro é, pois, O Filho do Pescador, de Teixeira e Souza. E o livro, se não influi literariamente, influi pelo exemplo em outros escritores. Fraquíssimo, não é ele, entretanto, como o de Tereza Margarida - de muito melhor qualidade - uma tentativa solta, ocasional, infecunda. Com ele temos um caminho aberto para outros e para o mesmo autor. O mestiço de Cabo Frio é que dá começo à história do nosso romance brasileiro, situado no Brasil, feito por filho do País, de espírito formado na terra e a ela radicalmente ligado.

(de Camargo, Oswaldo, In O Negro Escrito - Apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira, 1987, SP)

Entrevista ao Portal-Afro

Portal – Podemos usar a expressão "literatura negra"? Existe literatura negra?
Oswaldo de Camargo - Acredito que a partir do momento que o negro resolve falar de sua realidade e identidade como negro, trazendo as marcas de sua história, mesmo dentro de uma língua portuguesa, ortodoxa, acadêmica, que seja, se ele conseguir fazer isso com arte e se essa literatura estiver sancionada por uma produção, ela existirá. A produção existe. É fato. Portanto, atestada pela produção, a literatura negra existe. Quando o negro pega suas experiências particulares e traz, sobretudo o "eu", a persona negra, com suas vivências, que um branco pode imitar mas não pode ter, o nome que damos a isso é literatura negra.
Portal – Quando surge essa literatura negra no Brasil? É possível identificar suas fases até os dias atuais?
Oswaldo de Camargo - Ela começa a existir a partir do momento que o negro olha para si mesmo e passa a contar como negro suas experiências particulares, suas memórias, sua vida, suas diferenças, sua identidade, mesmo que esta escrita tenha como base um português camoneano. A grosso modo podemos iniciar este movimento com Luís Gama ao escrever o poema "Bodarrada", que traz o problema da identidade negra. Um texto como "Bodarrada" só poderia ter saído de um negro. O branco não pode idealizar isto, pois o autor está trazendo sua experiência particular de negro. É verdade que podemos citar, no século XVIII, Domingos Caldas Barbosa, mas aí de uma maneira mais enfraquecida, o "Eu", mesmo, aparece apenas com Luís Gama. Depois vem Cruz e Souza com "Consciência Tranqüila", "Escravocratas" e sobretudo "Emparedado". Essas obras são particularíssimas, jorram de dentro de um "Eu" negro. Continuando, podemos lembrar Lima Barreto e dizer que uma nova fase da literatura negra se inicia em 1926, quando aparece a figura de um poeta pobre e pequeno, Lino Guedes, que escreve com os olhos voltados para a comunidade negra. A diferença é que Luiz Gama e Cruz e Souza escreveram sobre o negro, mas não para um público negro. Já Lino Guedes escreve como negro, sobre o negro, para o negro, num momento de ebulição cultural e social. Não podemos considerar a obra de Lino Guedes como grande literatura, mas vale como marco do começo da negritude no Brasil. Depois vem Solano Trindade com sua poesia política, contestatória e marxista, que dá um rumo de grandeza à literatura negra cantando e exaltando Zumbi dos Palmares. Um contraponto ao trabalho de Lino Guedes, que era católico e moralista. Podemos dizer que a literatura negra atual segue essas duas tendências, somadas às influências africanas e sobretudo norte-americanas. Portanto, podemos ordenar desta forma: Domingos Caldas Barbosa, Luís Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes e Solano Trindade.
Portal - Todos estes nomes seriam nomes guias?
Oswaldo de Camargo - Sim, são nomes guias.
Portal - Então Solano Trindade seria o último grande nome guia?
Oswaldo de Camargo - Diria que sim, pois para que possamos medir a importância de um escritor, de sua obra e vislumbrar até que ponto ela influenciou a produção literária de seus sucessores é preciso esperar 30, 50.
Portal – A literatura africana influenciou ou influencia a literatura negra produzida no Brasil?
Oswaldo de Camargo - A literatura negra está enrolada com a literatura ocidental, sobretudo com a norte-americago na, francesa, portuguesa e etc. O escritor negro brasileiro está muito desvinculado da questão africana. Quando ele escreve, está usando os padrões europeus, latinos, padrões herdados por uma cultura, digamos, ocidental. A literatura africana foi na maior parte ágrafa (sem escrita).
Portal - A influência da literatura norte-americana é boa? Não seria mais interessante uma maior proximidade com a produção africana?
Oswaldo de Camargo - Não. Nossa realidade está muito mais próxima da norte-americana. O escritor negro brasileiro conhece muito mais os conflitos e as questões de identidade do negro norte-americano. O africano não passou por isso. Estou falando da diáspora. O escritor africano não foi desraizado, mesmo com a invasão do colonizador ele não foi retirado de sua "casa" e mandado para uma terra estranha. Já os norte-americanos, assim como os brasileiros carregam esta herança. Então, quando o negro escreve no Brasil, ele naturalmente tem mais afinidade com o negro dos Estados Unidos. Uma unidade nascida da experiência comum da diáspora, que foi fundamental.
Portal – Então, diante desse histórico, não há condições para uma unidade ideológica entre a produção brasileira e africana?
Oswaldo de Camargo - A produção literária vem do subconsciente. O escritor não é um ser que escreve à toa. Ele mesmo determina o rumo que quer dar à sua obra. O ímpeto que leva africanos e brasileiros a escrever são diferentes. Os africanos "lutam" contra um invasor, nossa luta é pela afirmação de uma identidade, que foi esfacelada. Nós estamos tentando nos recompor, os africanos estão se defendendo.
Portal – A literatura produzida por brancos que falava de negros foi prejudicial à "causa negra"?
Oswaldo de Camargo - Depende muito do escritor. Por exemplo, Trajano Galvão, que iniciou no século XIX com os ventos do romantismo, olhou ao redor de si, descobriu o negro na senzala. e começou a escrever poemas, a grande linguagem da época, a respeito disso. Foi muito válido, foi muito bom. Ninguém tinha interesse em escrever sobre escravos. Escravos não mereciam literatura. Ninguém se deteria a analisar psicologicamente um escravo, que era apenas uma coisa, um vazio, no mesmo patamar dos animais. Então Trajano Galvão passa a se interessar e ergue o negro a condição de objeto de literatura. Foi uma valorização. Feita por branco? Sim, mas somente poderia ter sido feita por branco, que detinha a literatura naquela época. "Para que surja uma literatura é necessário que haja um caldo literário. E esse caldo já existia no Brasil. Já existiam vários poetas brancos escrevendo sobre negros. Mulatos também escreviam, mas não voltados para a negritude. Veja bem, naquela época, a partir do momento que o mulato escrevia, ele já não era mais considerado como negro. A partir do momento que ele aprende a ler e escrever, viaja para Lisboa e ascende socialmente, ele obscurece suas raízes negras. Portanto não produz essa literatura negra. Ele não tem conflitos de negro. Ele não tem conflitos de cor. Ele não pensa no fator cor. Ele vive com naturalidade a ilusão de ser um branco, por ter ascendido socialmente. Culturalmente era um branco. Então sua produção será geralmente a produção de um branco. Como escritor ele será um branco." "A única exceção que encontraremos no século XVIII será Domingos Caldas Barbosa. Um mulato que volta seu olhar para sua cor e escreve sobre isso. Não é a toa que Manuel Bandeira cita-o como precursor da poesia brasileira. Ele, um mulato, que foi chamado de orangotango por Bocage e de macaco por outros. Foi ridicularizado e humilhado por ter ousado entrar nos palácios, recitando e cantando o lundum, um rítmo de negros. Os intelectuais da época zombavam dele. Ele era satirizado pelos outros escritores. Tudo isso por assumir sua cor e ascendência."
Portal – Existe algum elo que une os escritores brasileiros a outros de mesma língua (portuguesa)?
Oswaldo de Camargo - O fator primordial não é a língua. A personalidade do escritor é que irá dar a cor para a língua. É como Kafka, que nasceu em Praga e fala o alemão. Não houve um encadeamento de experiência de escritores africanos de língua portuguesa com os brasileiros. É difícil imaginar que o escritor apenas por comungar a mesma língua irá compartilhar das mesmas experiências. Não esqueçamos da diáspora... "... Esta experiência enorme de sermos descendentes de escravos marca profundamente toda nossa produção e nossa vida. Tudo que fazemos está marcado pelo fato de sermos netos e bisnetos de escravos. Essa lembrança não se arreda tão facilmente. Portanto, nossa produção terá essa marca, é isto que a torna singular, diferente. É isto que justifica chamarmos o que escrevemos de literatura negra... quando ela tem os quesitos de arte..."
Portal – Como podemos identificar essa literatura que é arte?
Oswaldo de Camargo - É quando lemos um texto que tira o melhor partido das palavras, que se adapta perfeitamente ao que ele quer expressar e esta adaptação não é um texto científico, um compêndio, é um texto com arte. O escritor manipula a palavra com arte. Ele não quer apenas que o texto traga indícios de uma realidade e sim uma coisa complexa, um instrumento que vai mostrar, vindo do subconsciente, uma outra realidade, de uma maneira atípica. A visão do escritor é realista ou supra-realista, que pode mostrar uma realidade muito além do que se imagina, quando for verdadeiro. Caso não seja verdadeiro, não se discute... Não adianta discutir... Não entrou no subconsciente... ... Como dizia Carlos Drummond de Andrade: usar a chave... ele não abriu nenhuma porta... O grande verso do Drummond é "trouxe a chave?" Infelizmente, boa parte de nossos escritores não possui a chave...
Portal - Será por isso, então que a literatura negra é tão pouco representativa?
Oswaldo de Camargo - A literatura de modo geral é um instrumento frágil para se sustentar, independente de ser branca ou negra. Sozinha, a literatura é fraca, por trabalhar com a palavra. Ela não tem as atenções da mídia como tem a música e até mesmo as artes plásticas, por se aproximar mais de uma arte utilitária. Se você não faz então uma literatura academiável, que possa ser discutida em universidades, propositalmente você se marginaliza, pois seu tema é marginal. Você estará usando o instrumento literário para tratar de assunto que não é usual, um assunto que se ocupa da proporção mais empobrecida, menos respeitada, historicamente desvalorizada da sociedade brasileira... E tem mais, a literatura não é apenas escrever, ela tem que vender. As editoras não querem apenas um bom texto, elas querem é vender. Nenhum editor, com raras exceções, publica um texto apenas por sua beleza, ele quer é vender o livro.
Portal – Mas aí ele não tem os mesmos critérios...
Oswaldo de Camargo - Não tem. Nem pode ter, pois essa literatura não esta imbricada num processo tradicional do negro escrever. O negro escreve pouco.
Portal - E lê pouco...
Oswaldo de Camargo - Talvez até por isso. Percebe como é complexo? Por melhor que seja um livro com temática negra, ninguém garante que haverá um publico enorme para ele, pois o grau de impregnacão de uma realidade negra que o escritor quer propor, não existe na sociedade brasileira. O norte-americano já tem esta possibilidade. A sociedade americana está impregnada de uma questão negra, por fatores históricos, etc. A sociedade branca brasileira não é seduzida por este assunto, pelo contrário, esse tema nem existe para ela. Não existe uma questão negra para o brasileiro, em geral. Portanto uma literatura concebida com padrões negristas não terá a ressonância que tem um texto negro nos Estados Unidos. A sociedade americana, até por seu pragmatismo, proporciona ao escritor muito mais chance de vender, justificando um investimento, do que um escritor negro brasileiro de mesma capacidade. O escritor negro brasileiro é um grande herói. Ele aposta muitas vezes no vazio. É um profeta que acredita a despeito de tudo. E eu como um dos mais velhos escritores desta época, estou vendo que vale a pena apostar.
Portal – Mas o senhor é uma instituição.
Oswaldo de Camargo - Não sei... Sei apenas que sou um dos mais velhos. Sou um dos poucos que conviveu com Solano Trindade, o que foi uma grande honra. Comecei muito cedo e digo que vale a pena apostar Quando você escreve um texto nunca se pode prever seu caminho. Este texto pode começar a falar de verdade depois de 50 anos, então é um ato de aposta. Mas vale a pena de fato tentar traduzir, fazer uma nova leitura do país, escrevendo poema, conto, novela, ensaio, dentro de uma visão negra que o branco não poderia ter dado nunca, por não ter a vivência especifica do negro.
Portal – Se o negro brasileiro não lê e o branco que lê não se interessa por nossos assuntos, para quem o escritor negro escreveria?
Oswaldo de Camargo - A pergunta é interessante. Mas, em primeiro lugar o escritor escreve para ele mesmo. Como falou Dostoievsky.. "Eu escrevo para espantar meus demônios." O escritor precisa expor o que sente, dividir o que tem com os outros, mas primeiro consigo mesmo.
Portal – É um ato de angústia, então?
Oswaldo de Camargo - Sim, por que não? Ele pega um fato de sua infância, um amor frustrado, por exemplo. Frustração é que faz boa literatura e não o que dá certo. É por isso que a pessoa equilibrada não pode ser um bom escritor. Um pai de família que chega em casa tira os chinelos, beija a mulher, beija os filhos, senta-se à mesa, nunca poderá ser um bom escritor. Escrever é um ato de desencontro, de angústia. Ele vai escrever para compensar o que não é, desde que tenha talento. É a sublimação pela arte: Eu sou nada socialmente, mas sou um príncipe escrevendo. E este canto é o canto da liberdade, eu escrevo o que quiser. Posso ser um santo ou um demônio escrevendo...
Portal – Canto da liberdade...A literatura seria uma das possibilidades dos negros serem livres?
Oswaldo de Camargo - Sim. "Mas ter talento não basta para ser escritor. Existe todo um aparato para chegar a ser um bom escritor. É preciso saber entender o termo de uma palavra. A palavra pesa. A diferença entre a palavra "belo" e "bonito" pode modificar totalmente o sentido de um texto. O escritor é um alquimista do verbo. Ele tem o dom da mágica, é um demíurgo, cria um mundo com palavras. Para se fazer isto tem que se preparar, "ter a chave", e isto passa pela observação da obra dos outros, pela leitura, pela obsessão por alguns textos que marcaram sua vida. Até para imitar... Não existe um escritor sem outro escritor.
Portal – E nem sem leitor... O senhor é otimista? Acredita na formação de uma geração de jovens negros brasileiros interessados por literatura?
Oswaldo de Camargo - Este é um fenômeno geral. Não acontece apenas com o negro. Não existe uma questão negra isolada da realidade brasileira. Este drama da leitura é um drama geral do Brasil. A leitura não se tornou um hábito, uma paixão, uma obsessão. O Brasil seria outro país se houvesse a obsessão da leitura. A realidade brasileira seria melhor pensada. Haveria uma crítica violenta à estrutura partindo das grandes massas. A vida religiosa seria outra. Eu sou católico. Aqui é somente por tradição, pois as verdades religiosas profundas não são conhecidas... "Qual a força do Japão pós-guerra? Qual a força da Alemanha pós-guerra?. Cultura. E a cultura passa necessariamente pela leitura". "No século VIII foi escrita a Ilíada, de Homero, que se tornou a educadora da Grécia, que era lida pelos poetas ambulantes para o povo, nas casas, nos palácios. Hoje quem substitui Homero é a televisão. Ela está educando? Não, pelo contrário, está nivelando da maneira mais baixa possível, o que interessa a muita gente. E grande parte destas pessoas influenciadas por este subproduto continua sendo negra e miscigenada, que são os que detém as condições de dar o pulo, de dar o salto..."
Portal - A vaidade maior de um escritor é ser lido?
Oswaldo de Camargo - Sim, mas pelo bom leitor, pelo leitor inteligente, que troca figurinhas com o autor, que indaga, é raro mas acontece. Aí é o prêmio máximo. Mas voltando à vaidade, minha vaidade é ter persistido num mesmo rumo. Muitos desistiram e eu consegui. Este é meu grande orgulho.
Portal – Falando em persistência, os Cadernos Negros chegam à sua 23ª edição. Qual sua opinião sobre os Cadernos?
Oswaldo de Camargo - É uma proeza inédita no país, pertence à vida da resistência negra neste país. Examinar literariamente o peso disto já é outra história, uma coletânea é uma coletânea... Se em cada Caderno aparecer pelo menos um escritor com um texto legitimo terá valido a pena. Os Cadernos devem ser elogiados por sua persistência, por serem uma grande referência neste roteiro do negro trazer sua experiência particular de literatura. É uma referência obrigatória.
Portal – O que o senhor pensa dos escritores brancos de hoje que escrevem sobre vivências e temas negros?
Oswaldo de Camargo - Não há nenhuma novidade nisto. É um branco interessado no assunto. Ele fez. A visão dele irá somar-se a outras visões. É uma visão possível. Um branco também vê. O branco está fronteiriço ao problema negro, mesmo sendo da alta sociedade, mas ao lado, a quinhentos metros há uma favela. Mas que fique claro, ele não está fazendo uma literatura negra, está fazendo um livro de sociologia, de etnografia, de recolha de conhecimentos sociais. Quando eu falo de literatura negra, falo sobretudo daquilo que torna a literatura um ato neurótico. Você cria um mundo de um nada, aparentemente nada, mas este nada é você, seu subconsciente, sua memória... Neste campo eles não entram. Vários escritores brancos já escreveram com muita categoria, Florestan Fernandes, Otaviani, Roger Bastide e outros... Mas não peça-lhes para entrar neste campo da literatura que é criar com palavras um mundo calcado tão só na experiência particular de um temperamento. Eu como negro sou um escritor, meu mundo é outro. Até pela geração que pertenço, pela religião que me salva e por minha sensibilidade... O escritor criará um mundo de dentro de si mesmo. Eis o ato neurótico. É o vazio e de repente o mundo.


Poema: O Saudoso guardador das reses

O saudoso guardador das reses
Bem sei que o moço corpo nesta sala
É parte de objetos: mesa, vaso,
cadeiras e a estante de verniz...
E a cidade cerca o véo fundo
do pensamento livre destes ciscos...
Às vezes largo a pressa e o olho baço
percorre a extensão da pele enxuta,
e julgo ali rever o amado sítio
hoje pousado sobre relembranças...
Nas tardes, se vou só, prossigo a luta
para o retorno àquele tempo,
idade inusitada em terras desse nunca
-mais. Contudo em minha pele tento criar,
há muito tempo, um boi...
Bem sei que o moço corpo nesta sala
É parte de objetos: mesa, vaso,
cadeiras e a estante de verniz...
Porém, vos digo: o gado me persegue até agora
e eu cheiro o seu estrume,
só o detém aqui os edifícios,
que os homens erguem contra o bucolismo...
À noite, durmo um nada, suportando berros
de cabras no palheiro d'alma...


(In de Camargo, Oswaldo - 15 Poemas Negros,1959, SP.)

Solano Trindade, O poeta do povo - Aproximações




Solano Trindade, o poeta do povo.


Solano Trindade
nasceu em Recife, Pernambuco, no dia 26 de julho de 1908, mesmo ano da morte de Machado de Assis, e faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1974. Sua vida e seus livros podem motivar uma oportuna reflexão sobre o papel da literatura quando examinada como presença na observação das relações raciais do Brasil ou quando, procurando transpor essa questão, busca ser instrumento na tentativa de corrigir o mundo, vergando-se para o lado da justiça, bem - estar e liberdade para todos; caso exemplar deste poeta negro.
No entanto podemos ir além. E aceitar a literatura como construtora espiritual de muitos homens e como definidora de suas vidas. Então, literatura como bem a ser adquirido para alimento e crescimento do espírito, ou companheira da imaginação, essa que, conforme pensamento a Napoleão, " governa o mundo" e que levou Joaqui Nabuco a indagar: " Sem a imaginação, que utilidade teria para o homem a inteligência?".
Aqui, um dos versos mais citados por Solano, falando de suas motivações estéticas, versos que talvez elucidem porque o diminuem ou o exaltam desde o início de seu labor literário:



"Não
discplinarei
as minhas emoções estéticas
deixa-la-eis à vontade como meu desejo de viver...
É grande o espaço
embora se criem limites...
Basta somente que eu sofra a disciplina da vida
mas a estética
deve ser libertada."


SOLANO TRINDADE, POETA DO POVO - Aproximações,
é um texto escrito apartir das anotações que fizemos para a palestra Solano Trindade - Vida e Obra, pronunciada no Teatro Municipal de Mauá (SP), em 19 de agosto de 2008, por ocasição da III Jornada Literária - Centenário de Solano Trindade.

Interessados, falar com Raquel: 6662.4897